Cantigas do vento – DIÁRIO DO NOROESTE

Cantigas do vento – DIÁRIO DO NOROESTE
Publicado em 09/09/2024 às 10:47

Essa noite a minha janela se transformou num palco onde o vento se apresentou com sua orquestra de sopro, tantos eram os soprares que ganharam melodias pretendendo, talvez, enfeitar a minha noite de insônia. Eram fortes, arrojados, de inteligência material ávida pela força, misteriosos pelo meu desconhecimento de seus porquês, suspeitosos pela hora inapropriada e penetrantes pela disposição da pretensa serenata, e aí cabe uma explicação. Os ventos – digo-os no plural porque foram muitas as lufadas por toda a madrugada e de tão diferentes impulsos que as músicas tiradas da passagem estreita formando frestas, pareceram essas bandas que inundam ouvidos com arrufos dos quais se entende bulhufas.

A bem da verdade, pareciam talos de mamona ou mamão em bocas de moleques atrevidos a fazerem traquinagem. E sopraram, sopraram, sopraram, até que me levantei, tomei de uma toalha e devagar fui amoldando o tecido, dispondo-o ao longo do pé da janela tapando as frestas cantantes. Não foi fácil fazer com que a toalha se ajustasse às gretas mas, com cuidado apertando aqui, enfiando ali, o evento ventoso agora emburrado, parecia engolir seus próprios soprares.

Deitei-me de novo. Cobri-me. Ajeitei o travesseiro. Tudo sem acordar a mulher que ressonava bela e solta, envolvida em lençóis. Virei-me de lado para melhor me acomodar e fiquei assim um tempo, gozando do prazer em ter vencido. Esse é diferente, rejuvenesce, faz-nos pensar no tempo em que tínhamos músculos e que podíamos mandar com autoridade. Tossi minha tosse noturna, resto talvez do cigarro que larguei há mais de 30 anos. Agucei os ouvidos e o vento continuava a soprar, mas morria na toalha. Então sorri com a boca e a alma como se ali houvesse uma luz de estrela. Alarguei os lábios nesse escuro entrevado nas quatro paredes com a impressão de o ter clareado. Eu havia vencido o inoportuno.

Momentos passaram, até que algo me chamou à atenção: era o silêncio lá de fora. Nem um pio se ouvia, nem do vento, nem daquele canto fantasmagórico do urutau que às vezes ali se assenta a estragar a madrugada. Nem de algum carro passante. Nada. Nadinha de nada, e isso incomodou. Então pigarreei raspando a goela para chamar a atenção de alguma cigarra, ou grilo, ou folha que normalmente se arrasta pela calçada e faz barulho infernal. Nada. Nem a minha mulher roncava.

Pode isso? Nada de nada?

Pois eu estava assim, procurando barulho que me embalasse naquele resto de noite indormida. Mas não. O silêncio era sepulcral, arrepiante, intrigante, desgastante.

Pois, num só puxão, joguei as cobertas ao chão. Ergui o corpo, sentei-me à cama com as mãos em concha a melhor auscultar. E nada. Enfiei os dedos nos ouvidos limpando-os. O nada continuava ali.

Então me levantei meio brabo, meio atordoado, meio estúpido chamando Jesus de Genésio, e retirei à força a tolha das gretas, e a vida lá fora se fez vida novamente em lição que aprendi às penas: há momento que o silêncio é ensurdecedor!